quinta-feira, 12 de novembro de 2009

"o verdadeiro problema do mundo é a falta de loucos"


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A capa de couro tinha o título gravado em letras douradas: O Evangelho dos Loucos. Folheei-o e dei-me conta de que todas as páginas internas estavam em branco.

– Mas não tem nada escrito nele – observei.

– Você tem razão. E está assim porque o livro ainda não foi escrito. Por isso o lançamento depende de uma escolha.

– Qual escolha?

– Aquela que terá de fazer aqui no dia de hoje. Você precisa escolher se quer ser realmente aquilo que é ou se prefere ser uma mentira. Isso esclarece por que motivo a pergunta que lhe fiz era tão importante – e olhando-me profundamente, repetiu a mesma questão de antes: – Quem é você, meu amigo?

Tive vontade de levantar-me e ir embora. Aquilo tudo não passava de um absurdo, um palavreado sem sentido. Não bastasse toda a angústia que quase me lançara ao mar, toda a confusão mental que ameaçava engolfar-me numa massa caótica, tinha ainda que me envolver num teatro disparatado como aquele. Não, não podia mais suportá-lo. Era preciso terminar com aquela farsa.

– Isso é loucura! – reagi.

– Sim, meu caro, você acerta em cheio quando chama isso de loucura. Pois se trata de algo completamente louco sim. E quando digo que concordo que se trate de loucura, não estou me referindo àquela que acaba levando as pessoas ao manicômio. Não, não é de uma enfermidade que estou falando – explicou o homem, transmitindo grande autoridade na voz. – Preciso lhe dizer uma coisa, um segredo que deveria ser dito em voz alta, que deveria ser gritado sobre os telhados: o verdadeiro problema do mundo é a falta de loucos. É isso mesmo o que você está ouvindo. Posso lhe garantir que se houvesse mais loucos neste mundo certamente todos teríamos menos problemas, menos dores, menos infelicidade. Há outra coisa que você precisa saber também e que vou lhe dizer: existem regras que foram criadas pelos homens e que depois de terem sido criadas acabaram escravizando estes mesmos homens. Quer um exemplo? Pois aqui tem uma: a vida consiste em trabalhar duro na intenção de garantir uma velhice confortável. Posso lhe dar outra se você quiser: o seu valor está naquilo que você tem e é preciso ter isso e aquilo caso queira ser aceito pela sociedade. Posso apostar que você já se deparou muitas vezes com essas regras e que deve ter sentido o peso delas certamente. Mas eu ainda lhe dou mais uma, aquela que me parece ser a pior de todas: se você acreditar em algo que se encontre para lá da sua realidade acabará se decepcionando caso não encontre nada. Todas essas leis foram inventadas pelos homens e são justamente elas que os mantêm aprisionados agora. Acontece que quando você percebe a existência dessas regras e tenta quebrá-las, os homens se apressam a gritar: Louco! Consideram uma loucura que se atente contra as conveniências que eles mesmos criaram. No fundo, o louco é sempre um estorvo para o mundo, porque em sua loucura ele acaba mostrando a falsidade daquelas leis e, desta forma, obriga as demais pessoas a enxergarem a mentira em que decidiram viver. É por isso que os loucos são perseguidos, são apedrejados, são atirados aos leões ou são crucificados. Todo santo é um grandessíssimo louco, por exemplo. A santidade é realmente uma espécie de loucura. Digo isso porque muitas dessas regras inventadas pelos homens se opõem às regras de Deus, e o louco ou o santo, como queira, ao dar-se conta disso, quebra as leis artificiais em nome da verdadeira lei que comanda todas as coisas. Logo, também os santos são incompreendidos e perseguidos muitas vezes. Mas essa loucura, a santa e real loucura, se por um lado escandaliza a alguns homens, por outro é capaz de abalar os alicerces do mundo. O louco revela aquilo que se encontra oculto, abre uma janela que conduz à luminosidade e permite que a aragem penetre os cômodos empoeirados da terra. Se eles não existissem, meu caro, viver nesta realidade seria insuportável.

O homem continuou:

– Eu lhe disse que você precisa responder a uma pergunta, precisa decidir que tipo de pessoa é. A escolha aqui é bastante simples: viver na prudência da mentira ou na loucura da verdade. E eu posso lhe garantir, meu amigo, seu momento de fazer essa escolha chegou. Assim como todos os homens deste mundo, você também criou as suas regras, criou barreiras que começaram a se interpor entre você e a verdade. Sua vida passou a ser guiada por mentiras e, de um modo estranho, estas ganharam a aparência de coisa real. E você acreditou nelas. Acreditou que nunca seria o escritor mundialmente conhecido, que nunca seria amado por outra mulher e que viveria apenas uma existência de fracassos. Você se trancou naquele maldito quarto e desistiu de viver. E por quê? Porque tem medo de sofrer, tem medo de desejar e se decepcionar novamente. Foi por isso que desistiu de tudo, não é? Mas eu lhe digo, meu caro, seria melhor que fracassasse ainda um milhão de vezes do que continuar a viver como um covarde. Um verdadeiro louco nunca tem medo do fracasso. E não é porque se imagine poupado da possibilidade de fracassar. Não é isso. O louco é aquele que se lança a uma idéia ainda que saiba que ela tem tudo para dar errado. E se age assim é exatamente por ter consciência de que aquela é a coisa certa a se fazer. E quando fracassa, levanta-se e tenta de novo. Seu êxito está na persistência, bem como sua santidade. Portanto, eu lhe digo que chegou a hora de escolher. Decida agora se enfrentará as mentiras que o mundo lhe deu para acreditar ou se irá enterrar seus talentos por medo do fracasso.

Cada uma daquelas palavras atingia-me com força, como golpes certeiros de um pugilista. Aquele homem parecia vasculhar com precisão a minha alma, arrancar todas as sombras que nelas existiam e exibir tudo a meio palmo dos meus olhos. Via-me agora desnudado, sem ilusões nem eufemismos, e aquela visão me impressionava ao mesmo tempo em que me deixava perplexo.

– Mas como é possível que você saiba tanto a meu respeito? – indaguei.

– Não se preocupe em entender aquilo que se encontra para muito além da sua compreensão. Basta que você saiba que fui enviado para ajudá-lo. É por isso que estou aqui. Para ajudá-lo a fazer a escolha certa.

– E qual é, afinal, a escolha certa?

O homem pegou novamente o livro e mostrou-me as folhas que estavam em branco:

– Tome estas páginas que estão em branco como se elas fossem o seu futuro. Tome-as e escreva a sua vida. Essa é a oportunidade que eu agora lhe ofereço: a oportunidade de realizar plenamente os seus desejos. Desejar não é algo ruim, como alguns pretendem. A vontade é parte da natureza humana, é um poderosíssimo instrumento que todos os homens têm em suas mãos. A questão toda se resume em saber usá-la. É preciso saber desejar a coisa certa. Mas se você declinar essa minha oferta por causa do medo, então acabará escolhendo uma existência de mentiras, se enterrará numa vida medíocre, uma vida sempre limitada pelas regras do mundo. Ficará velho, morrerá num abrigo público para idosos e todas as oportunidades que lhe foram oferecidas morrerão com você sem nunca terem germinado. É por isso que eu lhe digo: escreva a sua vida. Você sonha com essa mulher, por exemplo, a jornalista, mas ao mesmo tempo acredita que ela é muito distante. Mundos diferentes, você pensa. Bobagem, meu caro, tudo bobagem. Você pode tê-la se assim o quiser, basta que você mesmo crie essa realidade. E isso exatamente do modo como sonha. Você pode ser o escritor mundialmente conhecido, se assim desejar também. Esses não são sonhos impossíveis. São reais. E são bons, pode ter certeza. Isso eu lhe digo com toda a convicção, porque sei que antes de nascerem em sua alma eles já existiam em outro lugar. Portanto, não tenha medo. Se você escolher acreditar em tudo isso escolherá o caminho certo, o caminho da santa loucura. Todos os santos acreditaram em coisas aparentemente impossíveis, nadaram contra a correnteza, enfrentaram a ira dos homens, mas ao final da jornada, alcançaram a recompensa que realmente importa. Daqui por diante, se você aceitar seguir esse caminho, terá de nascer novamente, porque escrever uma nova vida é nascer outra vez. Mas não tenha medo, pois você não estará sozinho nessa jornada.

Ao terminar o seu discurso, o homem levantou-se e antes de ir-se embora, disse-me:

– Viva, meu caro. A partir de hoje dedique-se a viver plenamente. A vida só vale a pena quando a experimentamos em abundância.
Gabriel Viviani
Publicado no Recanto das Letras em 19/09/2009
Código do texto: T181888

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